Entre os múltiplos aspectos que envolvem o encarceramento de pessoas transgênero no Brasil, um dos debates mais sensíveis diz respeito ao espaço no qual elas cumprem – ou deveriam cumprir – suas penas.
De acordo com a Resolução 348/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o condenado que se declara LGBT+ tem o direito de ser informado sobre a possibilidade de indicar o tipo de local onde prefere cumprir a pena. Embora a decisão final seja do magistrado, o apenado deve manifestar sua escolha após ser informado sobre a estrutura das unidades prisionais disponíveis, sobre a existência de celas ou alas específicas para a população carcerária LGBT+ e sobre a chance de convívio com detentos ou detentas em geral.
Ao mesmo tempo em que a resolução aponta para a possibilidade de criação de espaços exclusivos para os presos trans, em julho deste ano, um presídio destinado a pessoas LGBT+ em Belo Horizonte foi interditado parcialmente após uma onda de suicídios tentados ou consumados. Entre as justificativas para a medida, a juíza das execuções penais citou a possibilidade de penalização e segregação indevidas dos detentos trans em Minas Gerais. Segundo a magistrada, havia prejuízo especialmente para os presos que ficavam distantes da família, em razão da separação de acordo com a identificação de gênero.
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Outro problema pode ser a eventual discordância das demais presas, caso seja enviada ao mesmo presídio feminino uma mulher transgênero que não fez a cirurgia de redesignação sexual – possibilidade prevista no normativo do CNJ.
Esse é o tema desta matéria especial – que também aborda a questão da ressocialização para presos trans e detalha impressões que marcaram o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Reis Júnior, autor das fotos que ilustram a reportagem, em suas visitas a presídios pelo Brasil.
As regras não escritas do cárcere
No Centro de Detenção Provisória (CDP) Pinheiros II, em São Paulo, a separação foi o meio encontrado pelo diretor, Ernani Izzo, para evitar conflitos e garantir a proteção dos presos LGBT+.
O diretor comenta que, para além das leis e dos normativos que regulam o encarceramento, existem “regras não escritas”. Por exemplo, se dois presos têm um relacionamento homoafetivo, os “héteros” costumam não compartilhar com eles utensílios como copos e talheres. Também há registro de brigas entre presos de grupos distintos.
Para solucionar alguns desses problemas, o CDP Pinheiros II criou celas específicas para aqueles que se declaram LGBT+. Atualmente, o presídio possui 462 detentos desse grupo – 35% do total na unidade –, os quais ocupam 15 celas exclusivas.
Segundo Ernani Izzo, essa divisão agradou os próprios presos trans, “porque eles têm uma organização diferente de vida” em relação aos detentos em geral. O diretor garante que não há segregação total dessas pessoas na prisão, mas sim uma separação das acomodações, e que a ida para o alojamento específico é uma escolha do preso.
Para o diretor, os próprios presos trans costumam rejeitar a ideia do cumprimento da pena em espaço completamente segregado dos demais, “porque eles buscam relacionamento afetivo na prisão”.
A negociação da própria vida
Entender a heterogeneidade do público LGBT+ é uma das chaves para tratar as possibilidades de encarceramento, segundo a diretora de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides. Para ela, não é possível estabelecer, de antemão, qual deve ser a destinação de todos os presos transgênero, porque cada indivíduo tem a sua forma de identificação e expressão – o que influencia a opção pelo local de cumprimento da pena.
De acordo com Bruna Benevides, a Resolução 348/2020 do CNJ acertou ao possibilitar que o apenado manifeste a sua preferência, evitando que, na tentativa de protegê-lo, o juiz acabe por colocá-lo em situação de desconforto e sofrimento.
Além das diferentes dinâmicas que precisam ser consideradas em relação ao público trans em presídios – mulheres transexuais e homens transexuais, por exemplo, estão inseridos em situações diferentes de convivência e alojamento nas prisões femininas ou masculinas –, a diretora da Antra destaca outras situações delicadas, como a influência de facções criminosas sobre a população LGBT+.
“Existem espaços em que aquelas pessoas são postas em áreas neutras, mas, em caso de conflito, essas áreas são as primeiras a serem violadas. Então, é uma dinâmica que varia de unidade para unidade, mas que precisa de atenção. A comunidade LGBT+ tem que negociar com sua própria vida, sua identidade e sua orientação para ser mais aceita ou sobreviver naquele espaço. Às vezes, abrem mão ou admitem outra identidade, que são as próprias urgências que aquele ambiente exige para que qualquer pessoa se adapte e tenha segurança”, afirma.
Para a advogada Maria Eduarda Aguiar, o tratamento da questão também passa pelo direito de a pessoa trans escolher o seu alojamento. Confira, no vídeo, a visão da advogada:
A advogada Maria Eduarda Aguiar avalia a questão do encarceramento dos presos trans e opina sobre a forma como deveriam ser alojados.
O encontro das vulnerabilidades
Enquanto a orientação do CNJ e a avaliação de vários especialistas conduzem à ideia de que caberia à pessoa transgênero, dentro das possibilidades do sistema, optar pelo local de cumprimento da pena, a experiência profissional e acadêmica da procuradora da República Tatiana Dornelles a leva a fazer ressalvas quanto à convivência em um presídio para mulheres, especialmente em razão da fragilidade das detentas biologicamente femininas.
Mestre em criminologia, a procuradora realizou pesquisas e se aprofundou em estudos promovidos em outros países, como Espanha e Estados Unidos, para entender como deveria funcionar a ocupação de espaços nas penitenciárias por pessoas biologicamente do sexo masculino que se declaram mulheres (segundo a procuradora, em geral, não se discute a possibilidade de mulheres biológicas, ainda que se declarem homens, serem alojadas em presídios masculinos).
Tatiana Dornelles destacou que, no Brasil, apenas 5% da população prisional é formada por mulheres e, dentro desse grupo, 70% foram condenadas por crimes sem violência. Essa situação, aponta, é diferente entre os homens, os quais, frequentemente, estão presos por crimes cometidos com violência ou grave ameaça – entre eles, os de natureza sexual.
Além disso, de acordo com as pesquisas apontadas pela procuradora, as pessoas biologicamente masculinas repetem padrões masculinos, independentemente do gênero com o qual se identificam – situação agravada, segundo ela, pelo fato de que o reconhecimento da identidade trans, atualmente, depende da autodeclaração, ou seja, não se exige cirurgia de redesignação de sexo nem acompanhamento médico específico.
Em todo esse contexto, embora reconheça a vulnerabilidade das pessoas transgênero, a procuradora vê a prevalência da vulnerabilidade das detentas biologicamente femininas – as quais, dividindo o mesmo espaço com as presas trans, podem ser subjugadas pelo uso da força e estão expostas a crimes de natureza sexual.
A procuradora da República Tatiana Dornelles faz ponderações sobre o local de cumprimento da pena no caso de presas transgênero.
Segundo Tatiana Dornelles, alguns países têm revisto a prática de inserir presas transgênero em presídios femininos, exatamente em razão de episódios de violência. Ela cita o caso de uma mulher trans condenada por estupro na Inglaterra, que cometeu o mesmo crime contra outras detentas no presídio feminino – e que, depois disso, foi transferida para uma prisão masculina.
A procuradora considera que nenhum modelo é capaz de garantir, ao mesmo tempo, segurança e satisfação pessoal, mas acredita que haveria mais chance em uma ala separada e de acesso voluntário. “Elas estão presas, então não haverá um ambiente em que serão realmente felizes“, conclui.
O diretor do CDP Pinheiros II também expressa preocupação em relação ao encarceramento indistinto de pessoas trans. Ernani Izzo conta que já lhe pediram para receber um homem trans na unidade, mas recusou prontamente, preocupado com a segurança do próprio preso.
“Se uma pessoa chega com barba, com características masculinas, mas a genitália é feminina, com certeza pode acontecer uma violência contra essa pessoa aqui dentro”, enfatiza.
Para a promotora de justiça do Pará Danielle Dias, é preciso buscar medidas que favoreçam o convívio “pacífico e seguro” entre a população prisional.
“O sistema penal define o que é homem e o que é mulher a partir do sistema biológico. As mulheres trans e os homens trans se desencaixam dessas classificações. A gente sabe que já há muito desrespeito em sociedade para as travestis, para as mulheres trans, para os homens trans, para os gays, para as lésbicas. O sistema prisional é um reflexo do que ocorre na sociedade. Só que, no caso, a gente tem uma dupla despersonalização das identidades, e isso gera mais violência, mais desrespeito”, avalia.
Segundo a promotora, além de uma definição mais precisa para o tratamento do público LGBT+ na legislação – e não apenas na jurisprudência e nos normativos infralegais –, é necessário ter atenção para questões que influenciam diretamente nos problemas da inserção de presos trans, como a superlotação carcerária, as ingerências políticas e a rotatividade dos diretores dos presídios.
Os sobreviventes do pós-cárcere
Na história pessoal dos presos trans, é comum encontrar uma superposição de vulnerabilidades e discriminações, como pobreza, preconceito racial e preconceito sexual. Cumprida a pena, outra se acrescenta: a condição de ex-presidiário.
Segundo a advogada Maria Eduarda Aguiar, o contexto de múltiplos preconceitos dificulta o processo de recuperação e ressocialização, e ajuda a explicar o alto grau de reincidência nesse grupo.
“Quando a pessoa trans sai do presídio, ela não é acolhida e abrigada: acaba ficando na rua ou nos mesmos ambientes que a levaram a cometer aquele crime anterior, então há um grau de reincidência muito grande”, afirma.
De acordo com a advogada, há tratativas com o Judiciário do Rio de Janeiro para que seja desenvolvido um programa de ressocialização voltado especificamente para a população trans, como forma de mitigar, em alguma medida, a discriminação – por exemplo, no mercado de trabalho.
As dificuldades enfrentadas durante o cumprimento da pena e no período que se segue são tão profundas que, segundo a representante da Antra, essas pessoas são conhecidas como “sobreviventes do pós-cárcere”. Bruna Benevides defende que sejam criados projetos de acompanhamento para ex-presos trans que leve em conta a identidade de gênero como mais um elemento de dificuldade na reinserção social.
“As oportunidades para pessoas trans sobreviventes do cárcere são quase nulas e, quando existem, são pontos muito específicos que não dão conta de toda a complexidade. Não é só contratar. É necessário um esforço conjunto para que se entenda a importância daquela contratação. É a preparação do espaço para a chegada de um corpo trans, em um país onde a maioria dessas pessoas, sobretudo as trans femininas, têm dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho”, ressalta.
A esperança, a vaidade e o futuro
No dia em que o ministro Sebastião Reis Júnior foi ao CDP Pinheiros II para fotografar as presas transgênero, uma delas pareceu esquecer o universo de dilemas que envolvem sua pena, sua saúde e seu futuro: naquele momento, ela queria apenas ser uma bailarina diante das lentes do ministro, saltando em movimentos acrobáticos.
Reunidas em um espaço florido da unidade prisional, as presas trans não pouparam maquiagem, poses e sorrisos para serem fotografadas, enquanto o magistrado, atencioso, não economizava cliques e disposição: o resultado foram diversas fotos, algumas das quais acompanham esta reportagem.
Os sentidos dessa interação, contudo, vão muito além da fotografia: para as presas, é a chance de reafirmação das suas identidades e de valorização da autoestima – elementos que facilitam o próprio cumprimento da pena, segundo o diretor do CDP; para o ministro fotógrafo, é a oportunidade de reforçar que essa população precisa ser vista, compreendida e ajudada, para que, recuperada a liberdade, as imagens das suas vidas sejam ainda mais felizes.