Segunda Turma confirma que primeira transexual da FAB não poderia ter sido aposentada no posto de cabo

A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou um recurso interno (agravo) com o qual a União pretendia ​reverter decisão do ministro Herman Benjamin que, em junho do ano passado, havia mantido acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que garantiu a Maria Luiza da Silva – reconhecida como primeira transexual dos quadros da Força Aérea Brasileira (FAB) – o direito de se aposentar no último posto da carreira militar no quadro de praças, o de suboficial.

Entretanto, em razão do argumento da União de que só seria possível chegar a suboficial mediante participação em processo seletivo aberto a civis e militares (e não por meio de promoção), a turma considerou necessário que a questão seja reanalisada pelo juízo competente para cumprir o julgado, que terá melhores condições de avaliar qual posto poderia ter sido alcançado pela militar – sendo certo, de acordo com a turma, que esse posto não é o de cabo, patente em que havia sido indevidamente aposentada pela Aeronáutica.

Até que a controvérsia seja analisada pelo juízo da execução, a turma manteve o direito de Maria Luiza permanecer aposentada no posto de suboficial, estando vedada, ainda, a incidência de desconto ou cobrança de multa pela utilização de imóvel funcional pela militar.

Prematuro e ​ilegal

Na decisão monocrática, o ministro Herman Benjamin entendeu que, de forma prematura e ilegal, a militar foi posta na reserva, após ter realizado cirurgia de mudança de sexo – o que lhe retirou a oportunidade de progredir na carreira. A ilegalidade também foi reconhecida no primeiro e no segundo graus de jurisdição.

A Aeronáutica a considerou incapaz para o serviço militar, com base no artigo 108, inciso VI, da Lei 6.880/1980, que estabelece como hipótese de incapacidade definitiva e permanente para os integrantes das Forças Armadas acidente ou doença, moléstia ou enfermidade sem relação de causa e efeito com o serviço militar.

Consequência nat​​​ural

No recurso à Segunda Turma, a União alegou que houve reformatio in pejus no acórdão do TRF1 – o qual reconheceu o direito de Maria Luiza às eventuais promoções por tempo de serviço no período em que esteve ilegalmente afastada da atividade –, pois as promoções derivadas da reintegração não foram requeridas na origem.

Para o ministro Herman Benjamin, no entanto, o acórdão encontra-se em sintonia com o entendimento do STJ sobre o tema, ao definir que, após a anulação do processo administrativo, por consequência natural, estão assegurados à autora, automaticamente, as promoções e o soldo integral, bem como o direito à moradia.

“O direito do militar às promoções é automático em caso de anulação do ato que o excluiu dos quadros ou o conduziu à inatividade, independentemente, por conseguinte, de pedido expresso, nos termos inclusive das regras dos artigos  e 322, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, que determinam a interpretação do pedido à luz do conjunto que compõe a postulação”, afirmou.

Discrim​​inação

De acordo com o relator, seria inconcebível, como defendeu a União, que a militar tivesse direito à aposentadoria integral apenas no posto de cabo engajado (como foi aposentada).

“Prestigiar tal interpretação dos julgados da origem acentua, ainda mais, a indesculpável discriminação e os enormes prejuízos pessoais e funcionais sofridos pela recorrida nos últimos 20 anos em que vem tentando – agora com algum êxito – anular a ilegalidade contra si praticada pelas Forças Armadas do Brasil”, afirmou o relator.

Apesar disso, em vista do argumento da União quanto à impossibilidade de chegar a suboficial​ sem participação em processo seletivo, Herman Benjamin entendeu ser necessário que o juízo responsável pelo cumprimento da decisão possa avaliar, em ambiente de pleno contraditório, qual posto poderia ter sido alcançado pela militar se ela estivesse na ativa – se terceiro-sargento ou suboficial.​

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. TRANSEXUAL NAS FORÇAS ARMADAS (AERONÁUTICA). DISCRIMINAÇÃO APÓS SUBMETER-SE A CIRURGIA DE ADAPTAÇÃO DE SEXO. IMPOSIÇÃO DE REFORMA EX OFFICIO POR INVALIDEZ PERMANENTE PARA O SERVIÇO MILITAR. NULIDADE DO ATO. DIREITO AUTOMÁTICO A PROMOÇÕES E APOSENTADORIA INTEGRAL, COMO SE NA ATIVA ESTIVESSE, NO ÚLTIMO POSTO POSSÍVEL NA CARREIRA. ACÓRDÃO DA ORIGEM EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE REFORMATIO IN PEJUS NO ACÓRDÃO E NA DECISÃO MONOCRÁTICA.
1. Cuida-se de Agravo Interno contra decisão que conheceu do Agravo para não conhecer do Recurso Especial da União. Tanto o Tribunal de origem quanto o Relator do Agravo em Recurso Especial entenderam que o acórdão recorrido encontra-se em sintonia com entendimento do STJ.
2. O Recurso Especial da União combatia aresto da Corte regional que manteve o deferimento de Ação ajuizada por José Carlos Silva (ex-cabo das Forças Armadas) – que, após alteração de registro, passou a se chamar Maria Luiza da Silva – objetivando seu retorno às atividades militares com anulação do processo administrativo e consequente percepção do soldo integral e direito à moradia; ou, alternativamente, a inatividade com proventos integrais. Alegou-se violação dos artigos  512 e 515 do CPC⁄1973 (respectivamente 1.008 e 1.013 do CPC⁄2015), firme na tese de que o Tribunal Federal, ao julgar o recurso da autora, não observou os limites da demanda, laborando em evidente reformatio in pejus, na medida em que determinou que se procedesse às promoções da agravada sem que houvesse pedido expresso nesse sentido.
3. A União, nas razões do Agravo Interno, alega, em suma: a) ausência de julgamento em conformidade com a jurisprudência do STJ, o que desautorizaria a inadmissão monocrática do Recurso Especial; b) ocorrência de reformatio in pejus no acórdão recorrido, uma vez que deferidas as promoções derivadas da reintegração, mesmo elas não tendo sido requeridas na origem; e c) ocorrência de reformatio in pejus pela decisão agravada, pois não se garantiu na origem o direito à aposentação da autora como Suboficial (tema também debatido na Pet 12.852, conexa ao presente). Subsidiariamente, requer que se reconhecesse o direito da agravada a, no máximo, o posto de Terceiro-Sargento.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO CASO
4. De antemão, importantíssimo considerar que a militar peticionante foi posta na reserva, prematura e ilegalmente, por ter realizado cirurgia de mudança de sexo. Conforme se verifica nos autos, a reforma da agravada deu-se porque, por esse motivo, a Aeronáutica a considerou definitivamente incapaz para o serviço militar.
5. O Judiciário reconheceu a ilegalidade da medida administrativa no âmbito do processo judicial 0025482-96.2002.4.01.3400, que trata da revisão do ato de reforma da requerente. Há decisão judicial determinando inclusive que é direito da autora permanecer no imóvel funcional até que seja implantada a aposentadoria integral referente ao último posto da carreira de militar, qual seja o de Suboficial.
JULGAMENTOS EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ E INEXISTÊNCIA DE REFORMATIO IN PEJUS NO ACÓRDÃO DA ORIGEM
6. Verifica-se que o julgamento do Tribunal a quo encontra-se em sintonia com entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema discutido, segundo o qual, após a anulação do processo administrativo, por consequência natural, à autora estariam assegurados automaticamente as promoções e o soldo integral, bem como o direito à moradia. Confira-se: “Este Tribunal Superior tem o entendimento de que a decisão judicial que anula ato de licenciamento restaura o status quo ante, ou seja, determina o retorno do licenciado às fileiras da respectiva Força e o consequente pagamento dos valores retroativos, a partir da data do ato de licenciamento que foi anulado judicialmente.” (REsp 1.507.058⁄SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 24⁄3⁄2015). No mesmo sentido: AgRg no REsp 1.245.319⁄RJ, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 10⁄5⁄2012; REsp 1.276.927⁄PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 14⁄2⁄2012.
7. A agravante insiste na tese de que o julgamento do Recurso Especial não está em consonância com a jurisprudência do STJ em virtude de não haver, nos referidos julgados, nenhuma discussão sobre o direito a promoções no caso de inativação do militar, e muito menos sobre o tipo de promoção que eventualmente poderia ser deferida ao militar. Nada obstante, constata-se, com base na análise do presente caso e do acórdão da origem, que a ratio decidendi dos precedentes invocados é exatamente a mesma, isto é, “Tendo sido decretada a nulidade do ato conduziu a autora à inatividade, ela não pode ser prejudicada em seu direito às promoções que eventualmente teria direito se na ativa estivesse, no período em que ficou indevidamente afastada do serviço ativo, nos expressos termos dos artigos 59 e 60 da Lei n. 6.880⁄80, agora na condição pessoa do sexo feminino. […] Deve ser reconhecido o direito da autora às eventuais promoções por tempo de serviço no período em que esteve ilegalmente afastada do serviço castrense, pois ela é considerada, para todos os efeitos, como em efetivo serviço, por expressa previsão legal.” (fls. 858, e-STJ). Consequentemente, correta a decisão agravada, pois o acórdão da origem seguiu a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, consoante a qual o direito do militar às promoções é automático em caso de anulação do ato que o excluiu dos quadros ou o conduziu à inatividade, independentemente, por conseguinte, de pedido expresso, nos termos inclusive das regras dos arts. 5º e 322, § 2º, do CPC, que determinam a interpretação do pedido à luz do conjunto que compõe a postulação .
INEXISTÊNCIA DE REFORMATIO IN PEJUS NA DECISÃO AGRAVADA: O DIREITO DA AUTORA DE SER APOSENTADA EM POSTO DIVERSO DO DE CABO “ENGAJADO” E DE PERMANECER NO IMÓVEL FUNCIONAL ATÉ ENTÃO
8. A União sustenta que, considerando, de um lado, as informações apresentadas pelo Comando da Aeronáutica, em consonância com a legislação pertinente, e, de outro, a fundamentação da decisão agravada, verifica-se que a última graduação que poderia a autora alcançar em sua categoria, por antiguidade, ainda que considerando outros requisitos a serem observados – como a prática de estágio –, seria a de Terceiro-Sargento (QESA), pois não existe promoções por mera antiguidade a outros postos.
9. No caso, contudo, a reincorporação ao serviço militar não ocorreu, pois a agravada já havia atingido a idade limite para retorno das atividades quando declarada a nulidade do ato, de modo que ela possui o direito de receber aposentadoria no último posto do quadro praças da Aeronáutica, tendo em vista que lhe foi tirada a oportunidade de progredir em sua carreira por ato ilegal da agravante, inclusive de adquirir os requisitos não temporais apresentados pela União como óbices para sua promoção (cursos e afins).
10. Aliás, quando do julgamento dos recursos de Apelação interpostos, o TRF da 1ª Região expressamente consignou (fls. 831, e-STJ, destaques acrescentados): Tendo sido decretada a nulidade do ato conduziu a autora à inatividade, ela não pode ser prejudicada em seu direito às promoções que eventualmente teria direito se na ativa estivesse, no período em que ficou indevidamente afastada do serviço ativo, nos expressos termos dos artigos 59 e 60 da Lei n. 6.880⁄80, agora na condição pessoa do sexo feminino. (…) Deve ser reconhecido o direito da autora às eventuais promoções por tempo de serviço no período em que esteve ilegalmente afastada do serviço castrense, pois ela é considerada, para todos os efeitos, como em efetivo serviço, por expressa previsão legal. (…) O art. 98, inciso I, alínea c do Estatuto dos Militares determina a transferência para a reserva remunerada ex officio, sempre que o militar do quadro de Praças atingir idade-limite de 54 anos para graduação no último posto possível da carreira, Subtenente. Portanto, a União por intermédio da Administração Militar, tem o dever jurídico de implementar todas as promoções por antiguidade eventualmente cabíveis no interregno entre a data da publicação do ato de reforma – Portaria DIRAP nº 2873⁄1RC, D.O.U. 26⁄09⁄2000 (fls. 39) – e a data em que a parte embargada completou 54 anos – 20⁄07⁄2014.”
11. Vale destacar que, por ocasião do julgamento dos Embargos Infringentes no TRF da 1ª Região, em 24⁄5⁄2016, não houve modificação das premissas assentadas na decisão anterior, pois o acórdão embargado foi alterado unicamente para definir a questão do direito à promoção (sem controvérsia sobre o posto de Suboficial reconhecido anteriormente) e a ocupação do imóvel funcional pela agravada, nos limites da divergência, de modo que, à luz do art. 489, § 3º, do CPC, a interpretação da decisão da origem deve considerar o conjunto dos pronunciamentos.
12. Dessa forma não há falar em reformatio in pejus, porque, diante da notícia de violação do direito da agravada de permanecer no imóvel antes de ser adequadamente aposentada, a decisão agravada e a da Pet 12.852 simplesmente fizeram cumprir, a título de cautela (antes da fase de cumprimento de sentença na 1ª instância), o que foi reconhecido pelas instâncias de origem (aposentadoria no posto de Suboficial). Ademais não existe no Recurso Especial da União nenhuma oposição ao posto definido, ainda que incidentalmente, no acórdão da Corte regional.
13. Definitivamente não era lícito à Aeronáutica aposentar a autora, como fez, no posto de Cabo engajado, pois é prevista a possibilidade de o militar integrante do QCB (cabo) passar a integrar o QESA, desde que: a) conte com mais de 20 anos de efetivo serviço na graduação de cabo e b) atenda às condições estabelecidas no Regulamento de Promoções de Graduados da Aeronáutica (REPROGAER) e na Instrução Reguladora do QESA (IRQESA). Prestigiar tal interpretação dos julgados da origem acentua, ainda mais, a indesculpável discriminação e os enormes prejuízos pessoais e funcionais sofridos pela recorrida nos últimos 20 (vinte) anos em que vem tentando, agora com algum êxito, anular a ilegalidade contra si praticada pelas Forças Armadas do Brasil.
14. De todo modo, em que pese o forte argumento de que o posto que cabe à recorrida já foi definido pela instância de origem, diante da insistência da União em defender que não é possível ascender ao cargo de Subtentente⁄Suboficial sem participação em processo seletivo aberto a civis e militares (e não por meio de promoção), razoável que a questão seja reanalisada no juízo competente para cumprir o julgado (art. 516, II, do CPC), que terá melhores condições, em ambiente de pleno contraditório, de avaliar que posto poderia ser alcançado pela recorrida se na ativa estivesse (Terceiro-Sargento ou Suboficial), sendo certo, contudo, que tal posto não é o de Cabo engajado (como impropriamente foi aposentada a autora). Evidentemente, até à decisão do referido juízo, a autora deve permanecer aposentada no posto definido na decisão das fls. 1046⁄1055 (Suboficial), vedado, ainda, qualquer desconto ou cobrança de multa pelo período de ocupação do imóvel funcional.

Leia mais:

Primeira militar transexual da FAB tem reconhecido direito à aposentadoria como subtenente

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): AREsp 1552655

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