A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão por maioria de votos, admitiu ser válido um testamento particular que, mesmo não tendo sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital.
Para o colegiado, nos processos sobre sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado deve ser a preservação da manifestação de última vontade do falecido, de modo que as formalidades legais devem ser examinadas à luz dessa diretriz máxima. Assim, cada situação deve ser analisada individualmente, para que se verifique se a ausência de alguma formalidade é suficiente para comprometer a validade do testamento, em confronto com os demais elementos de prova, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador.
A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, explicou que a jurisprudência do STJ permite, excepcionalmente, a relativização de algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil no âmbito do direito sucessório.
“A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador”, afirmou.
Flexibilização
A controvérsia analisada pela Segunda Seção teve origem em ação para confirmar um testamento particular lavrado em 2013 por uma mulher em favor de uma de suas herdeiras.
Em primeiro grau, o juiz confirmou a validade do testamento, sob o argumento de que não existia vício formal grave e que era válida a impressão digital como assinatura da falecida, diante do depoimento de testemunhas do ato, inclusive em relação à lucidez da testadora.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais reformou a sentença sob o fundamento de que a substituição da assinatura de próprio punho pela impressão digital faz com que o testamento não preencha todos os requisitos de validade exigidos pelo artigo 1.876 do Código Civil de 2002.
Ao analisar o recurso especial da herdeira beneficiária do testamento, a ministra Nancy Andrighi comentou que o Poder Judiciário não deve se imiscuir nas disposições testamentárias – com exceção apenas daquilo que for estritamente necessário para confirmar que a disposição dos bens retratada no documento corresponde efetivamente ao desejo do testador.
A ministra lembrou que, em processos analisados anteriormente pelo STJ, foram abrandadas as formalidades previstas no artigo 1.876 do CC/2002, como no REsp 701.917, no qual se admitiu, excepcionalmente, a relativização das exigências legais no tocante à quantidade de testemunhas para se reconhecer a validade do testamento particular.
Vício formal
No caso em julgamento, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho e de ter sido o testamento lavrado manualmente, apenas com a aposição da impressão digital, a relatora ressaltou que não há dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora, que, embora sofrendo com limitações físicas, não tinha nenhuma restrição cognitiva.
“A fundamentação adotada pelo acórdão recorrido para não confirmar o testamento, a propósito, está assentada exclusivamente no referido vício formal. Não controvertem as partes, ademais, quanto ao fato de que a testadora, ao tempo da lavratura do testamento, que se deu dez meses antes de seu falecimento, possuía esclerose múltipla geradora de limitações físicas, sem prejuízo da sua capacidade cognitiva e de sua lucidez”, observou.
Para Nancy Andrighi, uma interpretação histórico-evolutiva do conceito de assinatura mostra que a sociedade moderna tem se individualizado e se identificado de diferentes maneiras, muitas distintas da assinatura tradicional.
Nesse novo cenário, em que a identificação pessoal tem sido realizada por tokens, logins, senhas e certificações digitais, além de sistemas de reconhecimento facial e ocular, e no qual se admite até a celebração de negócios complexos e vultosos por meios virtuais, a relatora enfatizou que “o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor”, devendo a real manifestação de vontade ser examinada em conjunto com os elementos disponíveis.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONFIRMAÇÃO DE TESTAMENTO PARTICULAR ESCRITO POR MEIO MECÂNICO. OMISSÃO E OBSCURIDADE NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO ENFRENTADA E PREQUESTIONADA. SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO DO TESTADOR. REQUISITO DE VALIDADE. OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA, CONTUDO, DA REAL VONTADE DO TESTADOR, AINDA QUE EXPRESSADA SEM TODAS AS FORMALIDADES LEGAIS. DISTINÇÃO ENTRE VÍCIOS SANÁVEIS E VÍCIOS INSANÁVEIS QUE NÃO SOLUCIONA A QUESTÃO CONTROVERTIDA. NECESSIDADE DE EXAME DA QUESTÃO SOB A ÓTICA DA EXISTÊNCIA DE DÚVIDA SOBRE A VONTADE REAL DO TESTADOR. INTERPRETAÇÃO HISTÓRICO-EVOLUTIVA DO CONCEITO DE ASSINATURA. SOCIEDADE MODERNA QUE SE INDIVIDUALIZA E SE IDENTIFICA DE VARIADOS MODOS, TODOS DISTINTOS DA ASSINATURA TRADICIONAL. ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO QUE TRAZ PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DA VONTADE DO TESTADOR, QUE, SE AUSENTE, DEVE SER COTEJADA COM AS DEMAIS PROVAS.1- Ação ajuizada em 26⁄01⁄2015. Recurso especial interposto em 02⁄06⁄2016 e atribuído à Relatora em 11⁄11⁄2016.2- Os propósitos recursais consistem em definir se: (i) houve omissão relevante no acórdão recorrido; (ii) é válido o testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital.3- Deve ser rejeitada a alegação de omissão, obscuridade ou contradição quando o acórdão recorrido se pronuncia, ainda que sucintamente, sobre as questões suscitadas pela parte, tornando prequestionada a matéria que se pretende ver examinada no recurso especial.4- Em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador.5- Conquanto a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto a vontade do testador.6- Em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais, e na qual se admite a celebração de negócios jurídicos complexos e vultosos até mesmo por redes sociais ou por meros cliques, o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante.7- A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador.8- Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva.9- O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte. Precedentes.10- Recurso especial conhecido e provido.
Leia o acórdão.