O recurso extraordinário, com repercussão geral, foi interposto por pais que, por seguirem a filosofia vegana, se contrapõem à vacinação.
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se pais podem deixar de vacinar seus filhos menores de idade tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais. Por unanimidade, o Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral (Tema 1103) no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, que trata da matéria.
Convicções filosóficas
O recurso tem origem em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) contra os pais de uma criança, atualmente com cinco anos, a fim de obrigá-los a regularizar a vacinação do seu filho. Por serem adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções médicas invasivas, eles deixaram de cumprir o calendário de vacinação determinado pelas autoridades sanitárias.
Interesse da criança
A ação foi julgada improcedente na primeira instância, com fundamento na liberdade dos pais de guiarem a educação e preservarem a saúde dos filhos (artigos 227 e 229 da Constituição Federal). O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), contudo, reformou a sentença e determinou, em caso de descumprimento da decisão, a busca e apreensão da criança para a regularização das vacinas obrigatórias. De acordo com o tribunal estadual, prevalecem, às convicções familiares, os interesses da criança e de sua saúde e os da coletividade.
Escolha informada
No RE, os pais argumentam que, embora não seja vacinada, a criança tem boas condições de saúde. Segundo eles, a escolha pela não vacinação é ideológica e informada e não deve ser considerada como negligência, mas excesso de zelo em relação aos supostos riscos envolvidos na vacinação infantil. Defendem que a obrigatoriedade da vacinação de crianças, prevista no artigo 14, parágrafo 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em normas infralegais, deve ser sopesada com a liberdade de consciência, convicção filosófica e intimidade, garantidas na Constituição.
Estado x família
Ao se manifestar pela existência de repercussão geral da matéria, o relator do recurso, ministro Luís Roberto Barroso, observou que a controvérsia constitucional envolve a definição dos contornos da relação entre Estado e família na garantia da saúde das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais. “De um lado, tem-se o direito dos pais de dirigirem a criação dos seus filhos e a liberdade de defenderem as bandeiras ideológicas, políticas e religiosas de sua escolha. De outro lado, encontra-se o dever do Estado de proteger a saúde das crianças e da coletividade, por meio de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas, como é o caso da vacinação infantil”, explicou.
Para Barroso, o tema tem relevância social, em razão da natureza do direito requerido e da importância das políticas de vacinação infantil determinadas pelo Ministério da Saúde. A relevância política diz respeito ao crescimento e à visibilidade do movimento antivacina no Brasil, especialmente após a pandemia da Covid-19. Do ponto de vista jurídico, o caso está relacionado à interpretação e ao alcance das normas constitucionais que garantem o direito à saúde das crianças e da coletividade e a liberdade de consciência e de crença.
O recurso ficou assim ementado:
DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. ILEGITIMIDADE DA RECUSA DOS PAIS EM VACINAREM OS FILHOS POR MOTIVO DE CONVICÇÃO FILOSÓFICA.
1. Recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou que pais veganos submetessem o filho menor às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, a despeito de suas convicções filosóficas.
2. A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos, a da Covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade.
3. A liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227).
4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis vigentes, como, por exemplo, a Lei nº 6.259/1975 (Programa Nacional de Imunizações) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a Lei nº 13.979/2020 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19), de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha.
5. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança).
6. Desprovimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.