Além de várias irregularidades no programa de concessão do governo mineiro, ação destaca que existe lei proibindo que rodovias que compõem a Rede de Integração Nacional sejam transferidas pela União a outros entes da federação
O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública para que a Justiça Federal determine a retirada do trecho da BR-365 situado entre os municípios de Uberlândia e Patrocínio (km 474,6 ao 605,5) do Programa de Concessão do Sistema Rodoviário do Estado de Minas Gerais, que inclui vários trechos de rodovias federais alienados pela União.
De acordo com o MPF, esse trecho encontra-se sub judice, pois em ação que tramita há mais de seis anos (processo nº 0007161-11.2015.4.01.3803), foi proferida decisão judicial obrigando a União e o Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (Dnit) a duplicarem o trecho da BR-365 situado entre Uberlândia e o entroncamento com a BR-040, passando pelas cidades de Patrocínio e Patos de Minas, nas regiões do Triângulo Mineiro e Noroeste.
Após perícia realizada no local, a 2ª Vara Federal de Uberlândia concluiu pela necessidade urgente de duplicação, em face do grande volume de veículos e número de mortes naquele trecho. Houve recursos interpostos pelas partes, os quais se encontram aguardando julgamento pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região.
Para o MPF, a “União Federal e o Dnit estão agindo com manifesta má-fé, lançando maus tratos ao princípio que determina que as partes, no processo, devem evitar condutas que possam configurar deslealdade processual, ao cederem para o Estado de Minas um trecho de rodovia que é objeto de ação judicial, (…) E assim estão agindo para subtraírem-se da obrigação de fazer investimentos para adequação, manutenção e conservação de uma rodovia que integra o patrimônio público federal, abrindo mãos de suas atribuições institucionais”.
Ilegalidades no programa de concessão – “Para piorar a situação, além de esse trecho da BR-365 ser objeto de discussão em ação ainda não transitada em julgado, também foram encontradas diversas ilegalidades no Programa de Concessões do Sistema Rodoviário do Estado de Minas Gerais”, afirma o procurador da República Cléber Eustáquio Neves, autor da ação.
A primeira delas consiste no fato de que a BR-365 faz parte da Rede de Integração Nacional (Rinter). “As rodovias ou trechos de rodovias que fazem parte da Rinter foram expressamente excluídas de transferências pela Lei nº 12.379/2001. Então, a rodovia BR-365 jamais poderia ter sido transferida pela União ao Estado de Minas Gerais, pois, repita-se, ela faz parte da Rede de Integração Nacional”, explica o procurador.
O próprio Dnit, por meio da Diretoria de Planejamento e Pesquisa, ao ser questionado a esse respeito pelo MPF, manifestou-se contrariamente à alienação dos trechos da rodovia da BR-365, “tendo em vista que a solicitação é de apenas parte da rodovia e que, além disso, trata-se de um corredor com relevante participação no fluxo de transportes, razão pela qual já existe em andamento, no âmbito da autarquia federal, projeto de adequação de capacidade do trecho, uma vez que já foram realizados estudos indicando a necessidade imediata de duplicação”.
Também o Ministério da Justiça posicionou-se contra a transferência da BR-365, com o argumento de que, com a “doação”, esse trecho deixará de ser federal, gerando grande impacto na atuação da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, e causando “efeitos deletérios na segurança pública, especialmente no tocante a enfrentamento aos crimes transfronteiriços. Isso porque haverá uma descontinuidade na rodovia federal, que é estratégica para a ligação entre as regiões centro-oeste e nordeste do país, uma importante rota para o combate ao crime do tráfico de drogas e congêneres”, relata a ação.
“Esdrúxulo” – O Ministério Público Federal ainda chama atenção para outro fato: o de que a União está repassando ao Estado de Minas Gerais parte da BR-365 sem exigir do governo mineiro qualquer contrapartida ou investimento. Por sinal, “o Estado de Minas Gerais, instado a se manifestar, esclareceu que não fará investimentos algum para melhoria da rodovia, até porque não os possui, e que todas as intervenções na rodovia serão feitas em 30 anos pela empresa que eventualmente ganhar a concessão, sendo que os valores para esse fim serão obtidos mediante linha de crédito perante o Banco Nacional de Desenvolvimento Nacional (BNDES)”.
De acordo com o procurador, “a União está alienando as rodovias para, supostamente, não ter que investir na sua conservação e reforma, mas, ao mesmo tempo, anuncia que irá disponibilizar às empresas vencedoras da concorrência mais de R$ 3 bilhões de reais através do BNDES”.
“Além disso, o programa de concessão é tão esdrúxulo, que podemos perceber que, na verdade, o que está ocorrendo é a doação de um bem público para o setor privado, com o agravante de que a sociedade ainda arcará com as tarifas de pedágio e as próprias futuras intervenções a serem feitas pela empresa que ganhar a concessão, já que isso ocorrerá com recursos públicos do BNDES”, afirma Cléber Neves.
A ação aponta que a Concorrência Internacional nº 002/2021 “está viciada em sua forma e conteúdo, pois várias cláusulas proporcionam facilidades inexplicáveis à futura concessionária e acarretam enorme insegurança jurídica, com riscos de prejuízo ao erário e aos próprios usuários da rodovia, pois a previsão de investimentos não supre as necessidades reais da rodovia em termos de investimentos com o intuito de garantir as premissas básicas da engenharia de tráfego, a exemplo de SEGURANÇA VIÁRIA, FLUIDEZ DE TRÁFEGO e CONFORTO DO USUÁRIO, que vão muito além das tarifas abusivas e resvalam na própria segurança viária e no total descaso com o interesse público”.
Controle inexistente – O MPF ainda destaca que o Estado de Minas Gerais sequer dispõe de uma
agência regulatória, nos moldes da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) ou da Agência Estadual de Transportes de São Paulo (Artesp), para fiscalizar as concessões. Isto é, o Estado de Minas Gerais entregará a BR-365 para uma empresa privada sem que exista, no aparelho estatal, um órgão para regular e fiscalizar os serviços públicos de transporte e logística concedidos à iniciativa privada.
“Quem garantirá que os serviços concedidos serão prestados de forma correta e com tarifas justas?”, pergunta o procurador. “A atuação técnica e autônoma das agências regulatórias, otimizando o trabalho de fiscalização do Estado e a regulação dos preços das tarifas, é imprescindível para garantir uma melhor implementação das obrigações e a qualidades dos serviços prestados, pois é seu papel acompanhar de forma eficaz os cronogramas de obras, a antecipação de problemas e a melhoria da qualidade das rodovias concedidas”.
Para o MPF, é temerária a implementação de um vasto programa de concessões rodoviárias, como o propagado pelo Estado de Minas Gerais, sem a existência de agência reguladora perfeitamente estruturada.
“Na verdade, o que se vislumbra é que mais uma vez caminhamos para o infeliz destino dado às BRs 497 e 452, que passaram para o Estado há décadas e nenhum investimento foi feito. A BR-452, por exemplo, por força da Medida Provisória nº 82/2002, foi repassada ao Estado de Minas Gerais em 2002 e, 20 anos depois, não foi feito nenhum investimento para melhoria do trecho entre Uberlândia e Araxá. E, da mesma forma, a BR-497, trecho entre Uberlândia e Prata, transferida ao Estado de Minas Gerais em 2001, permanece até hoje sem qualquer investimento, não dispondo sequer de acostamento”, relata a ação.
Pedidos – O MPF pede que a Justiça Federal determine a imediata suspensão do leilão constante do Edital de Concorrência Internacional 002/2021, publicado pelo Estado de Minas Gerais, no que diz respeito à concessão do trecho da BR-365 entre os municípios de Uberlândia e Patrocínio.
Outro pedido é para que seja determinado ao BNDES que se abstenha de firmar qualquer parceria que importe em liberação de linhas de créditos para empresa ou consórcios de empresas que vierem a participar dessa concessão.
Pede-se ainda a condenação da União, do Dnit e do Estado de Minas Gerais na obrigação de indenizarem o dano social e moral coletivo, em face do desvio de finalidade e deslealdade processual verificados neste caso, além de sua manifesta atuação em desacordo com o que impõe a legislação.
Clique aqui para ler a íntegra da inicial da ação.
ACP nº 1001573-59.2022.4.01.3803