A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que condenou uma operadora de plano de saúde a pagar os custos de cirurgia plástica de redução de mamas indicada para uma paciente diagnosticada com hipertrofia mamária bilateral.
Os ministros reafirmaram o entendimento de que é meramente exemplificativo o rol de procedimentos de cobertura obrigatória previsto na Resolução 428/2017 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), sendo vedado à operadora recusar o tratamento prescrito pelo médico para doença coberta pelo contrato.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, apontou que, nos termos da Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998), a amplitude da cobertura deve ser regulamentada pela ANS, à qual cabe elaborar o rol de procedimentos para tratamento de todas as enfermidades constantes da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as segmentações assistenciais contratadas.
Limitação abusiva
Em seu voto, a magistrada mencionou precedentes do Supremo Tribunal Federal e entendimentos doutrinários para afirmar que os atos normativos da ANS, além de compatíveis com a legislação específica, devem ter conformidade com a Constituição e o Código de Defesa do Consumidor, e não podem inovar a ordem jurídica.
“Quando o legislador transfere para a ANS a função de definir a amplitude das coberturas assistenciais (artigo 10, parágrafo 4º, da Lei 9.656/1998), não cabe ao órgão regulador, a pretexto de fazê-lo, criar limites à cobertura determinada pela lei, de modo a restringir o direito à saúde assegurado ao consumidor, frustrando, assim, a própria finalidade do contrato”, declarou.
A ministra considerou abusiva qualquer norma infralegal que restrinja a cobertura de tratamento para as moléstias listadas na CID, admitindo-se apenas as exceções previstas na Lei 9.656/1998, como os tratamentos experimentais. Assim, de acordo com a relatora, o rol de procedimentos da ANS não pode representar uma delimitação taxativa da cobertura, pois o contrato se submete à legislação do setor e às normas do CDC.
Ela observou que a jurisprudência do STJ era pacífica em reconhecer a natureza meramente exemplificativa do rol da ANS, mas, em 2019, no julgamento do REsp 1.733.013, a Quarta Turma alterou seu entendimento e passou a considerá-la taxativa. A controvérsia será resolvida pela Segunda Seção, em embargos de divergência que ainda não têm data prevista para julgamento.
Linguagem técnica
Nancy Andrighi afirmou que não é possível exigir do consumidor que conheça e possa avaliar todos os procedimentos incluídos ou excluídos da cobertura que está contratando, inclusive porque o rol da ANS, com quase três mil itens, é redigido em linguagem técnico-científica, ininteligível para o leigo.
Segundo a ministra, um simples regulamento da ANS não pode estipular, em prejuízo do consumidor, a renúncia antecipada do seu direito a eventual tratamento prescrito para doença listada na CID, pois esse direito resulta da natureza do contrato de assistência à saúde. Considerar taxativo o rol de procedimentos, para a relatora, implica criar “um impedimento inaceitável de acesso do consumidor às diversas modalidades de tratamento das enfermidades cobertas pelo plano de saúde e às novas tecnologias que venham a surgir”.
A magistrada acrescentou que o reconhecimento dessa suposta natureza taxativa também significaria esvaziar completamente a razão de ser do plano-referência criado pelo legislador, “que é garantir aos beneficiários, nos limites da segmentação contratada, o tratamento efetivo de todas as doenças listadas na CID, salvo as restrições que ele próprio estabeleceu na Lei 9.656/1998”.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZATÓRIA C⁄C COMPENSAÇÃO DE DANO MORAL. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO. CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE. AMPLITUDE DE COBERTURA. ROL DE PROCEDIMENTOS E EVENTOS EM SAÚDE DA ANS. NATUREZA EXEMPLIFICATIVA. NEGATIVA DE COBERTURA DE CIRURGIA DE MAMOPLASTIA BILATERAL. PROCEDIMENTO INDICADO PARA TRATAMENTO DE HIPERPLASIA MAMÁRIA BILATERAL. RECUSA INDEVIDA CARACTERIZADA. DEVER DA OPERADORA DE INDENIZAR A USUÁRIA. AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO DE AFLIÇÃO PSICOLÓGICA E ANGÚSTIA. SITUAÇÃO DE URGÊNCIA OU EMERGÊNCIA. CIRCUNSTÂNCIAS NÃO DELIMITADAS NO ACÓRDÃO RECORRIDO. DANO MORAL AFASTADO. JULGAMENTO: CPC⁄15.1. Ação indenizatória c⁄c compensação de dano moral ajuizada em 22⁄05⁄2017, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 04⁄03⁄2020 e atribuído ao gabinete em 09⁄06⁄2020.2. O propósito recursal é dizer sobre: (i) o cerceamento de defesa; (ii) a obrigação de a operadora de plano de saúde indenizar a beneficiária pelas despesas com a realização de cirurgia, após recusar a cobertura do procedimento; (iii) a configuração e o valor arbitrado a título de compensação do dano moral.3. A jurisprudência desta Corte orienta que a avaliação quanto à necessidade e à suficiência das provas demanda, em regra, incursão no acervo fático-probatório dos autos e encontra óbice na súmula 7⁄STJ, bem como que não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide, quando o Tribunal de origem entender substancialmente instruído o feito, declarando a prescindibilidade de produção probatória.4. Nos termos do § 4º do art. 10 da Lei 9.656⁄1998, a amplitude da cobertura assistencial médico-hospitalar e ambulatorial, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, é regulamentada pela ANS, a quem compete a elaboração do rol de procedimentos e eventos para a promoção à saúde, a prevenção, o diagnóstico, o tratamento, a recuperação e a reabilitação de todas as enfermidades que compõem a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – CID, da Organização Mundial de Saúde – OMS, respeitadas as segmentações assistenciais contratadas.5. O Plenário do STF reafirmou, no julgamento da ADI 2.095⁄RS (julgado em 11⁄10⁄2019, DJe de 26⁄11⁄2019), que “o poder normativo atribuído às agências reguladoras deve ser exercitado em conformidade com a ordem constitucional e legal de regência”, razão pela qual os atos normativos exarados pela ANS, além de compatíveis com a Lei 9.656⁄1998 e a Lei 9.961⁄2000, dentre outras leis especiais, devem ter conformidade com a CF⁄1988 e o CDC, não lhe cabendo inovar a ordem jurídica.6. Conquanto o art. 35-G da Lei 9.656⁄1998 imponha a aplicação subsidiária da lei consumerista aos contratos celebrados entre usuários e operadoras de plano de saúde, a doutrina especializada defende a sua aplicação complementar àquela lei especial, em diálogo das fontes, considerando que o CDC é norma principiológica e com raiz constitucional, orientação essa que se justifica ainda mais diante da natureza de adesão do contrato de plano de saúde e que se confirma, no âmbito jurisdicional, com a edição da súmula 608 pelo STJ.7. Quando o legislador transfere para a ANS a função de definir a amplitude das coberturas assistenciais (art. 10, § 4º, da Lei 9.656⁄1998), não cabe ao órgão regulador, a pretexto de fazê-lo, criar limites à cobertura determinada pela lei, de modo a restringir o direito à saúde assegurado ao consumidor, frustrando, assim, a própria finalidade do contrato.8. O que se infere da leitura da Lei 9.656⁄1998 é que o plano-referência impõe a cobertura de tratamento de todas as doenças listadas na CID, observada a amplitude prevista para o segmento contratado pelo consumidor e excepcionadas apenas as hipóteses previstas nos incisos do art. 10, de modo que qualquer norma infralegal que a restrinja mostra-se abusiva e, portanto, ilegal, por colocar o consumidor em desvantagem exagerada.9. O rol de procedimentos e eventos em saúde (atualmente incluído na Resolução ANS 428⁄2017) é, de fato, importante instrumento de orientação para o consumidor em relação ao mínimo que lhe deve ser oferecido pelas operadoras de plano de saúde, mas não pode representar a delimitação taxativa da cobertura assistencial mínima, na medida em que o contrato não se esgota em si próprio ou naquele ato normativo, mas é regido pela legislação especial e, sobretudo, pela legislação consumerista, com a ressalva feita aos contratos de autogestão.10. Sob o prisma do CDC, não há como exigir do consumidor, no momento em que decide aderir ao plano de saúde, o conhecimento acerca de todos os procedimentos que estão – e dos que não estão – incluídos no contrato firmado com a operadora do plano de saúde, inclusive porque o rol elaborado pela ANS apresenta linguagem técnico-científica, absolutamente ininteligível para o leigo. Igualmente, não se pode admitir que mero regulamento estipule, em desfavor do consumidor, a renúncia antecipada do seu direito a eventual tratamento prescrito para doença listada na CID, por se tratar de direito que resulta da natureza do contrato de assistência à saúde.11. No atendimento ao dever de informação, deve o consumidor ser clara, suficiente e expressamente esclarecido sobre os eventos e procedimentos não cobertos em cada segmentação assistencial (ambulatorial, hospitalar – com ou sem obstetrícia – e odontológico), como também sobre as opções de rede credenciada de atendimento, segundo as diversas categorias de plano de saúde oferecidas pela operadora; sobre os diferentes tipos de contratação (individual⁄familiar, coletivo por adesão ou coletivo empresarial), de área de abrangência (municipal, grupo de municípios, estadual, grupo de estados e nacional) e de acomodação (quarto particular ou enfermaria), bem como sobre as possibilidades de coparticipação ou franquia e de pré ou pós-pagamento, porque são essas as informações que o consumidor tem condições de avaliar para eleger o contrato a que pretende aderir.12. Não é razoável impor ao consumidor que, no ato da contratação, avalie os quase 3.000 procedimentos elencados no Anexo I da Resolução ANS 428⁄2017, a fim de decidir, no momento de eleger e aderir ao contrato, sobre as possíveis alternativas de tratamento para as eventuais enfermidades que possam vir a acometê-lo.13. A qualificação do rol de procedimentos e eventos em saúde como de natureza taxativa demanda do consumidor um conhecimento que ele, por sua condição de vulnerabilidade, não possui nem pode ser obrigado a possuir; cria um impedimento inaceitável de acesso do consumidor às diversas modalidades de tratamento das enfermidades cobertas pelo plano de saúde e às novas tecnologias que venham a surgir; e ainda lhe impõe o ônus de suportar as consequências de sua escolha desinformada ou mal informada, dentre as quais, eventualmente, pode estar a de assumir o risco à sua saúde ou à própria vida.14. É forçoso concluir que o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS tem natureza meramente exemplificativa, porque só dessa forma se concretiza, a partir das desigualdades havidas entre as partes contratantes, a harmonia das relações de consumo e o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, de modo a satisfazer, substancialmente, o objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo.15. Hipótese em que a circunstância de o procedimento não constar do rol de procedimentos e eventos em saúde, não é apta a autorizar a operadora a recusar o seu custeio, sobretudo considerando que a cirurgia prescrita para a recorrida não se enquadra em nenhuma das hipóteses de exceção previstas no art. 10 da Lei 9.656⁄1998.16. Ausente a indicação no acórdão recorrido de que a conduta da operadora, embora indevida, tenha agravado a situação de aflição psicológica e de angústia experimentada pela recorrida, ultrapassando o mero inadimplemento contratual, ou ainda de que a recorrida se encontrava em situação de urgente e flagrante necessidade de assistência à saúde, deve ser afastada a presunção do dano moral.17. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
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