​​​​​​​​​A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em  julgamento realizado nesta quarta-feira (13), considerou juridicamente  possível a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo e  comercialização do cânhamo industrial – variação da Cannabis sativa com  teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3% – por pessoas  jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos.

Para o colegiado, contudo, a autorização deve observar regulamentação  a ser editada, no prazo máximo de seis meses (contados a partir da  publicação do acórdão), pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela União, no âmbito de suas competências. Entre outros fundamentos, a Primeira Seção considerou que o baixo  teor de THC presente no cânhamo industrial retira a possibilidade de  efeitos psicoativos e, portanto, distingue a planta da maconha e de  outras variações da cannabis usadas para a produção de drogas. Como  consequência, o colegiado entendeu que o cânhamo não está submetido às  proibições previstas na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) e em outros  regulamentos, sendo possível seu cultivo em território nacional.

A decisão foi proferida no âmbito de Incidente de Assunção de Competência (IAC 16)  e deve ser observada pela Justiça de primeiro e segundo graus de todo o  país. Para possibilitar o aprofundamento dos debates, em abril deste  ano, o STJ promoveu audiência pública sobre o tema, na qual  representantes de vários órgãos públicos e entidades privadas discutiram  o assunto. Participaram do julgamento, como amici curiae,  diversas entidades e instituições. Com a fixação das teses jurídicas  pelo colegiado, poderão voltar a tramitar os processos que estavam  suspensos à espera da definição do precedente qualificado.

Cânhamo é incapaz de gerar efeitos psicotrópicos e tem eficácia em tratamentos de saúde

A ministra Regina Helena Costa, relatora do recurso especial analisado pela Primeira Seção,  explicou que o caso não diz respeito à possibilidade de importação ou  cultivo do cânhamo industrial por pessoas físicas, tampouco discute usos  do produto diferentes das aplicações medicinal e farmacêutica. Segundo a ministra, o cânhamo (hemp) e a maconha são variedades distintas da Cannabis sativa.  Embora ambas tenham THC (componente responsável pelos estados alterados  ou eufóricos de percepção) e canabidiol (ou CBD, substância com  propriedades terapêuticas), a ministra ressaltou que os níveis das  substâncias são diferentes em cada variante.

Em relação ao cânhamo industrial, apontou a relatora, a concentração  de THC é, em geral, menor que 0,3%, de forma que a essa variação da cannabis é incapaz de causar efeitos psicotrópicos, ao mesmo tempo em que possui  alto teor de CBD. Por outro lado – apontou –, a maconha contém teores  entre 10% e 30% do THC, sendo classificada como droga psicotrópica. Regina Helena Costa também citou estudos que indicam a eficácia dos derivados da cannabis no tratamento de doenças e na atenuação de sintomas e transtornos – por  exemplo, em doenças neurodegenerativas, transtornos mentais e quadros  como a ansiedade.

Apesar desses potenciais benefícios, a ministra enfatizou que, devido  aos entraves legais e burocráticos, as pesquisas sobre o uso medicinal  do cânhamo e a produção dos medicamentos enfrentam altos custos.  O preço também é elevado em razão da necessidade de importação  dos insumos, em virtude da proibição imposta pela Anvisa para o cultivo  no país. Atualmente, o Brasil autoriza o uso e a comercialização de  remédios à base de cannabis, porém é proibida a produção nacional dos insumos necessários para a sua elaboração. ........

Primeira Seção fixou cinco teses sobre o tema

As teses fixadas no julgamento foram as seguintes: 1 – Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (Hemp), variedade da Cannabis com teor de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim  entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;

2 – De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n.  54.216/1964) e a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado  brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao  controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial (Hemp),  não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu  emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou  farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário;

3 – À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da Cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o  manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as  disposições da Lei n. 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a  variedade descrita no item I (cânhamo industrial – Hemp), cujo teor de THC é inferior a 0,3%;

4 – É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo,  industrialização e comercialização do cânhamo industrial (Hemp)  por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou  farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a  regulamentação a ser editada pela Agência Nacional de Vigilância  Sanitária – Anvisa e pela União, no âmbito de suas respectivas  atribuições, no prazo de 06 (seis) meses, contados da publicação deste acórdão; e

5 – Incumbe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa e à  União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a  adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação  indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir  a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais  atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade  fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis  técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras  medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou  comercial.